Série: Cartas Para Duda - Engolindo Sapos


Minha Eduarda. Preciso te confessar, mas não sem alguma vergonha. Eu sou do time que leva desafora pra casa. Levo muitos. É assim desde criança. Mesmo assim não consegui fugir de grandes brigas e batalhas que achei importantes nessa vida. Agora que sou adulto, eu levo desaforo pra casa quase todos dias, nossa família gera dezenas de empregos e milhões de reais em impostos por ano, mas isso não importa. Diariamente eu levo desaforo pra casa dos nossos clientes, de nossos funcionários, fornecedores, e ainda do governo que só faz falcatrua com o que rendemos. Acredito que são poucas coisas nessa vida que realmente valem a pena brigar de verdade. Se eu for cobrar cada desaforo que recebo, vou passar meu dia inteiro cobrando ninharias e eu acho que eu tenho coisas muito melhores para fazer.
Eu canso de ver vizinhos brigando, e tenho comigo que realmente eles não têm nada melhor para fazer. Eu tenho. Tenho uma vida para aproveitar. Não é um exercício fácil, não será fácil para você ainda mais tendo sangue italiano e sendo neta da sua vó Vanna. Minha mãe (tua vó) paga para arrumar uma briga, minha mãe tira as caras até quando o problema não é dela. Obviamente eu não tenho sangue de barata, mas canso de fingir que não escutei alguma coisa para evitar um desentendimento. Eu atravesso a rua para evitar um problema, a maioria atravessa atrás do problema. Cada um vive como bem entende. Só acho que a vida é curta. Eu engoli sapos de professores, amigos, funcionários, colegas, desconhecidos, políticos, da tua mãe, da minha e de mais um montão de pessoas. Vivo bem assim. Brigo por causas que realmente eu acho que valem a pena.
Com o passar dos anos eu soube fazer uma leitura maior do ser humano. Durante muito tempo eu tive dificuldade de entender o modo de pensar de muitas pessoas diferentes de mim, ou mesmo suas limitações e gostos pessoais. Hoje me aceito muito mais e aos outros também, tenho minhas brigas pessoais e outras nem tão pessoais assim, gosto do que é justo, o que é meu ninguém tira, especialmente minha paz. Não cedo esse direito para ninguém. A paz é minha e ninguém tasca. Numa ocasião eu estava procurando estacionamento no Zaffari, que estava com média lotação, porém estava começando a chover e todo mundo certamente queria ficar o mais perto da porta possível. Eu avistei uma vaga e fui me dirigindo a ela como meus piscas ligados, era fácil que perceber minha intenção e minha preferência, porém, abruptamente e de forma marota uma senhora avançou na minha frente, quase bateu no meu veículo e roubou a vaga que eu iria estacionar. Eu fiquei com muita vergonha e raiva ao mesmo tempo, eu estava com um amigo que quase enlouqueceu dentro do carro, queria pular e bater na mulher. Que depois que saiu do carro eu percebi que devia ter por volta de uns 40 anos, eu tinha quase 30 na época. Foi vergonhoso, mas eu engoli o desaforo. Fui para vaga seguinte. Eu não tinha medo dela, eu simplesmente repensei as possibilidades rapidamente. Eu tinha diversas alternativas, várias opções que me dariam uma sensação de vingança muito agradável, contudo vazias. Fiquei segurando meu amigo que queria agredir a mulher dentro do carro, e fui buscar uma nova vaga que em menos de 3 minutos a encontrei. Meu amigo bufava, eu torcia para não encontra-la dentro do mercado, sorte dela e nossa que não a encontramos mesmo. Fomos rápidos, pegamos apenas carvão e cerveja que estávamos levando para um churrasco com amigos. Na fila do caixa nós avistávamos a rua. Parecia que o mundo estava desabando. Em questão de 10 minutos, o céu se enfureceu. Meu amigo que não parou de reclamar um minuto desde que a mulher roubou nossa vaga agora queria me matar junto com ela. Estava furioso porque iria tomar chuva na cabeça graças ao desaforo da tal mulher que nem conhecíamos, ele procurava a mulher de um lado pro outro, afim de xinga-la, no mínimo. Eu torcia para que ele não a achasse. Eu já estava puto com ela e com ele também. 
Pagamos então nos encaminhamos para nosso carro, obviamente sem guarda chuva. O plano era ir correndo mesmo. No caminho pro nosso carro avistamos um tumulto na volta do carro da mulher que tinha nos “roubado” a vaga. Tinha segurança e outras pessoas na volta, ela não estava lá. O alarme estava tocando então chegamos perto e vimos o para-brisas quebrado, quebrou porque um baita galho caiu da arvore que o carro estava embaixo. Talvez tenha sido um raio que tenha quebrado o baita galho. Talvez tenha sido sorte nossa ela ter roubado nossa vaga, talvez se nós estivéssemos lá isso não aconteceria, vai saber? Nessa história eu sai afortunado, meu amigo se acalmou e jurou tentar ver as coisas de um jeito diferente. Foi assunto a noite toda em nosso churrasco, provavelmente essa seja minha melhor história de curto prazo para tentar convence-la a aceitar uns desaforos de vez em quando. Na esmagadora maioria das vezes fica a apenas a sincera sensação de impunidade no curto prazo, mas eu garanto que o sossego e paz de médio e longo prazo sobressaem. Brigue muito pelo que realmente vale a pena, eu te ajudo. Mas antes analise se realmente vale a pena. Com amor do teu pai.

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